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Por que não conseguimos mais ler livros?

Os livros podem salvar nossos cérebros dos efeitos digitais?  

Hugh McGuire (tradução livre: Nilton Wainer)

“Um dos desastres insperados da era moderna é que o novo e sem precedentes acesso à informação veio à custa da capacidade de nos concentrarmos em mais coisas. O pensamento profundo e imersivo que produziu muitas das mais importantes conquistas da civilização passou a sofrer um ataque inédito. Quase nunca estamos longe de uma máquina que nos garanta uma hipotética e libidinosa fuga da realidade.” Alain de Botton

 

No ano passado, li apenas quatro livros. As razões para esse número tão baixo são, eu acho, as mesmas razões pelas quais você leu menos livros do que você acha que deveria ter lido.

Tive muita dificuldade para me concentrar nas palavras, frases, parágrafos. Os capítulos, com suas páginas, seus parágrafos e mais parágrafos, parecem apenas uma enorme quantidade de palavras pelas quais a gente passa; mais nada. E depois de ler um capítulo, você passa para outro… e mais outro… antes de dizer “terminei” e passar ao próximo livro. A próxima coisa. A próxima possibilidade. Próxima, próxima, próxima.

Mas sou um otimista. Na maioria das noites de 2016, fui para a cama com um livro – em papel ou e-book – e comecei a ler. Uma palavra, depois a próxima. Uma frase. Duas frases. Talvez três. E então… sentia falta de alguma coisa, algo que me prendesse a atenção. Algo para arranhar aquela coceirinha no fundo da minha mente – uma olhada rápida no meu iPhone para ver fotos no Instagram, notícias (verdadeiras ou boatos) e piadas dos amigos no Facebook, algum link que me levasse a um artigo interessante, mais fotos no Instagram.

Li outra frase. Já tinha conseguido ler quatro.

Os fumantes mais otimistas sobre a sua capacidade de resistir à tentação são os mais propensos a recair no vício quatro meses depois. Praticantes de dieta muito otimistas são os menos propensos a perder peso. (Kelly McGonigal: “The Wollpower Instinct”).

Demora muito tempo para ler um livro, lendo quatro frases por dia. E é cansativo. No meio da quinta frase eu já estava dormindo.

Observei esse meu padrão de comportamento agora. Acho que a quantidade de livros que terminei de ler nunca foi tão baixa como no ano passado.

É deprimente, mais ainda porque minha vida profissional gira em torno de livros: eu crie a LibriVox (audiobooks de domínio público e gratuito), a Pressbooks (uma plataforma online para a tomada de impressão e e- books), e co-editei um livro sobre o futuro dos livros.

De uma forma ou de outra, tenho dedicado minha vida aos livros; eu acredito neles. Ainda assim, eu não era capaz de lê-los. E sei que não estou sozinho.

Quando as pessoas não conseguem se concentrar o tempo suficiente para ouvir uma música completa, o que se pode prever em relação à sobrevivência dos livros?

Ouvi uma entrevista no podcast New Yorker recentemente, o anfitrião estava entrevistando o escritor e fotógrafo Teju Cole.

Anfitrião:

– “Um dos desafios da cultura agora é, digamos, ouvir uma música inteira, já que estamos todos tão distraídos. Você ainda é capaz de dar profunda atenção às coisas, você é capaz de se envolver em algo dessa maneira?”

Teju Cole:

– “Sim, e muito.”

Quando ouvi isso, me senti abraçando o entrevistador. Ele não conseguia sequer ouvir uma música inteira, sem se distrair. Imagine a culpa que a pilha de livros da cabeceira dele provoca. Também me senti abraçando Teju Cole. São pessoas como ele que nos dão a esperança de que alguém vai conseguir ensinar nossos filhos a ler livros.

Dançando ao som de distração

Minha dificuldade na leitura de livros – o inevitável som da sirene me chamando para o mais recente post do mundo digital – também era uma realidade no restante da minha vida.

A apresentação de dança de minha filha de dois anos. Tutu cor de rosa, orelhas de gato. Junto com outras cinco crianças, na frente de uma multidão de 75 pais e avós, o show começou. Você pode imaginar o resto. Você já deve ter visto esses vídeos no Youtube, talvez até os de minha filha. O nível de fofura é extremo, um momento que define o orgulho parental. Minha filha nem sequer dançou, ela só apareceu em volta do palco, olhando para a platéia com os olhos arregalados com que uma menina de dois anos olha um bando de estranhos. Não importava que ela não dançava, eu estava muito orgulhoso.

Tirei fotos e gravei vídeos com meu telefone. E, por vício, verifiquei meu e-mail e o Twitter. Nunca se sabe.

Diversas vezes me encontro em situações desse tipo: verifico o e-mail, o Twitter, o Facebook, por nada, exceto pelo stress de ler uma mensagem que não posso responder no momento.

Acessar meu telefone enquanto minha filha fazia algo maravilhoso ao meu lado fez me sentir meio culpado, como se eu estivesse distraído, fumando um cigarro. Ou um cachimbo de crack.

Noutra ocasião, eu estava lendo no meu telefone enquanto a minha filha mais velha, a de quatro anos, tentava falar comigo. Eu mal entendia o que ela dizia, concentrado que eu estava num artigo sobre a Coreia do Norte. Ela agarrou meu rosto com as duas mãos e me virou em sua direção. “Olhe para mim”, disse ela, “quando eu estou falando com você.”

Ela estava certa. Eu deveria olhar e prestar atenção nela.

Quando estou com os amigos ou minha família, muitas vezes sinto um pulsar das profundezas, proveniente deste perfeito wafer criado pela engenharia, em aço inox, vidro e liga metálica, que está no meu bolso. Me toque. Olhe para mim. Você pode encontrar algo maravilhoso.

Esta doença não se limita a quando eu estou tentando ler ou em eventuais apresentações de minha filha. No trabalho, minha concentração foge constantemente: terminando de escrever um artigo (este, inclusive), respondendo a um pedido de cliente, ao revisar e comentar novos projetos, editando um texto.

Todas estas tarefas, críticas para o meu sustento, se voltam, com mais frequência do que eu deveria admitir, para um rápido olhar para Twitter (para o trabalho) ou Facebook (também para o trabalho) ou um artigo sobre fractais, que li justamente agora.

E-mail, é claro, é o pior, porque o e-mail é instrumento de trabalho e o e-mail que chega pode muito bem trazer uma tarefa mais fácil do que o trabalho que você está fazendo no momento, e isso significa poder concluir algo, em vez do que você está fazendo por obrigação. Só depois você volta para o que deveria estar fazendo o tempo todo.

A dopamina e os meios digitais

Acontece que os dispositivos digitais e os softwares são concebidos para nos fazer prestar atenção a eles, não importa o que estejamos fazendo. O mecanismo, demonstrado por estudos recentes da neurociência, funciona mais ou menos assim:

Novas informações criam um fluxo de dopamina no cérebro, um neurotransmissor que nos faz sentir bem. A promessa de novas informações compele seu cérebro a buscar uma nova dose de dopamina. Através de exames de ressonância magnética, é possível ver os centros de prazer do cérebro entrarem em atividade com a chegada de novos e-mails.

Assim, cada novo e-mail que você recebe gera uma inundação de dopamina. Cada novo fluxo reforça no seu cérebro a sensação de que o fato – verificar e-mail – traz como consequência uma enxurrada de dopamina. E nossos cérebros estão programados para procurar tudo que provoca fluxos de dopamina. Mais ainda: esses padrões de comportamento começam a criar caminhos neurais, que se tornam hábitos inconscientes: estou trabalhando em algo importante, vem a coceira cerebral… conferir e-mails, mais dopamina, buscar mais e-mails, mais dopamina, verificar o Twitter, mais dopamina, voltar ao trabalho. Mais e mais, e cada vez que acontece, o hábito se torna mais enraizado em nossas estruturas cerebrais.

Como os livros podem competir?

Nos trazendo um grande prazer.

Há um famoso estudo com ratos, usando um fio com eletrodos em seus cérebros. Quando o rato pressiona uma alavanca, um pouco de carga elétrica é liberada numa parte de seu cérebro que estimula a liberação de dopamina. É a alavanca do prazer.

Oferecendo alimentos e dopamina para que escolham, os ratos preferem a dopamina, muitas vezes até o ponto de exaustão e fome. Eles preferem a dopamina até como opção ao sexo. Alguns estudos registraram os ratos pressionando a alavanca de dopamina setecentas vezes em uma hora.

Nós fazemos a mesma coisa com novos e-mails: buscar, buscar, buscar.

Não há beleza no universo do outro lado do botão de atualização de e-mail, e é o click deste botão que fica me puxando para longe do trabalho que estou fazendo e dos livros que quero (e preciso) ler.

Por que os livros são importantes?

Quando penso na minha vida, lembro de um conjunto de livros que me moldaram – intelectualmente, emocionalmente, espiritualmente. Livros sempre foram uma fuga para a liberdade, uma experiência de aprendizagem, uma salvação, mas, além disso, maior do que isso, certos livros tornaram-se, ao longo do tempo, uma espécie de substância agregadora do meu entendimento do mundo. Penso neles como nós de uma rede de conhecimento e emoção, nós que tramam juntos o tecido do que eu sou. Livros, pelo menos para mim, mantém unido quem eu sou.

Livros, diferentes das artes visuais, da música ou mesmo do amor, nos forçam a imaginar os pensamentos de outra pessoa, palavra por palavra, durante horas e dias. Compartilhamos nossas mentes com o escritor, durante este tempo. Há uma lentificação, uma reflexão forçada, necessária e específica deste meio. Livros recriam pensamentos de outra pessoa dentro de nossa mente, e talvez seja esse exercício que fazemos, de mapear as palavras de outra pessoa, sem estímulos externos, é que dá aos livros o seu poder. Livros nos forçam a deixar os pensamentos de outra pessoa preencherem completamente nossas mentes.

Livros não são apenas transferidores de conhecimento e emoção, mas um tipo especial de ferramenta que nivela e aproxima duas pessoas, que permite a troca de novas ideias e emoções.

Esta supressão do eu é uma espécie de meditação também – e por terem sido os livros sempre tão importantes para mim, por seus próprios méritos (antes da era digital), ocorreu-me que “aprender a ler livros de novo” pode também ser uma maneira de libertar minha mente dos detritos digitais que a encharcam de dopamina. Esta lavagem de informação digital teria um duplo benefício: eu voltaria a ler livros novamente e iria recuperar o controle de minha mente.

Existem belos universos a serem encontrados atrás da capa de um livro.

Os problemas com o material digital

A neurociência tem confirmado muitas das coisas que as pessoas que sofrem de sobrecarga digital sabem intuitivamente. Que um bem sucedido funcionamento em multitarefa é um mito. A multitarefa nos torna mais estúpidos. Segundo o psicólogo Glenn Wilson, as perdas cognitivas da multitarefa são equivalentes a fumar maconha.

Isso é ruim, ao menos por dois motivos: ela nos torna menos eficientes no trabalho, o que significa que: ou produzimos menos ou sobra menos tempo para fazer outras coisas. Ou ambos.

Uma situação onde você está tentando se concentrar em uma tarefa e um e-mail não lido aguarda em sua caixa de entrada pode reduzir em 10 pontos seu resultado nos testes de eficiência. (“A Mente Organizada”, de Daniel Levitin)

É pior do que isso, porque a alternância constante de uma coisa para outra também é desgastante.

Meus dias menos produtivos, aqueles em que passei a maior parte do tempo pulando entre os projetos, e-mails, Twitter e tudo o mais, são também os meus dias mais cansativos. Eu costumava pensar que o meu cansaço era a causa desta falta de foco, mas percebi que, na realidade, era consequência.

É preciso bastante energia para ficar alternando a atenção entre uma tarefa e outra. Para manter o foco, não é preciso tanto. Isso significa que as pessoas que organizam o seu tempo de uma modo que lhes permite concentrar-se não só vão fazer mais, mas vão ficar menos cansados e, ao final, menos esgotados do neuroquimicamente. (“A Mente Organizada”, de Daniel Levitin)

O problema definido

E assim, o problema está mais ou menos identificado:

Não posso ler livros porque meu cérebro foi treinado para querer um fluxo constante de dopamina, que uma interrupção digital irá fornecer. Esse vício em dopamina digital significa que tenho dificuldade para me concentrar: nos livros, no trabalho, na família e nos amigos.

Problema (ou a maior parte dele) identificado. Mas há mais.

Ah, não se esqueça de televisão.

Vivemos, sem dúvida, uma era de ouro da televisão. O material que vem sendo produzido atualmente é muito bom. E em grande quantidade.

Nos últimos dois anos, minha rotina à noite tem sido uma variação de: ​​ir do trabalho para casa, exausto, certificar-me de que as meninas já comeram, comer, colocar as meninas para dormir, me sentir exausto, ligar o computador para assistir a televisão da nova-era-dourada, ver e-mails de trabalho e, geralmente, fazer xixi enquanto a TV da era de ouro consome 57% da minha atenção. Ir para a cama, tentar ler, verificar e-mails. Tente ler novamente. Cair no sono.

Aqueles que leem dominam mundo e aqueles que assistem televisão o perdem. (Werner Herzog)

Não sei se Werner Herzog está certo, mas sei que eu nunca diria sobre a televisão – até mesmo sobre as grandes produções (que são muitas) – o mesmo que digo sobre livros. Não existem programas de televisão que sejam como nós que mantenham unida minha compreensão do mundo. Minha relação com a televisão não é a mesma que tenho com os livros.

 

E, assim, uma mudança

A partir de janeiro, comecei a fazer algumas mudanças. As principais foram:

Não mais Twitter, Facebook ou a leitura de artigos durante o dia, no trabalho (duro).

Sem smartphones ou computadores no quarto(fácil).

Sem TV após o jantar (ao que parece, fácil).

Ao invés disso, ir direto para a cama e começar a ler um livro – normalmente em um tablet (ao que parece, fácil).

O mais surpreendente foi a rapidez com que minha mente se readaptou à leitura de livros. Eu achava que teria que me esforçar para retomar a capacidade de concentração – mas não foi preciso. Com menos impulsos digitais (e sem TV antes da cama, especialmente), com mais tempo (sem TV, novamente) e sem um tentador dispositivo digital por perto … havia de novo tempo e espaço para minha mente se concentrar num livro.

Que sensação maravilhosa!

Agora estou lendo mais livros do que eu lia há anos atrás. Tenho mais energia e mais foco do que eu tive por décadas. Ainda não superei totalmente meu vício em dopamina digital, mas estou chegando lá. Acho que a leitura de livros está me ajudando a retreinar minha mente para o foco.

E os livros, ao que parece, ainda são as mesmas coisas maravilhosas que eles eram antes. Já consigo lê-los, novamente.

Os e-mais, no entanto, continuam a ser um problema. Se você tem alguma sugestão para resolver isso, me avise, por favor.

(Por falar nisso, estou iniciando uma newsletter informativa sobre livros, leitura e da tecnologia que os rodeia. Meu objetivo é publicar algo novo a cada semana ou duas. Você pode se inscrever neste link: http://tinyletter.com/hughmcguire

 

O original deste artigo (em inglês) está em

https://medium.com/@hughmcguire/why-can-t-we-read-anymore-503c38c131fe#.bvc1t4two

Hugh McGuire é fundador da PressBooks, plataforma online de publicação de livros e LibriVox.org, a maior biblioteca de audiolivros grátis do mundo, lidos por voluntários.

Mais informações sobre o autor em http://hughmcguire.net/about-2/

 

 

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